Ron Lam

Escritora a residir no Japão, especializada em design, lifestyle e jornalismo de viagem, Ron trabalhou anteriormente como editora das revistas MING Magazine, ELLE Decoration e CREAM.


O sabor da sayu

38a edição | 04 2020

O que bebes enquanto comes uma refeição?” Foi esta a pergunta que um amigo japonês me fez depois de ter ficado surpreendido por não bebermos álcool durante o jantar.

 

Pensei imediatamente numa pessoa amiga de Hong Kong que acredita na naturopatia. Essa pessoa amiga disse-me certa vez, enquanto franzia o sobrolho, para eu não beber nada durante o jantar, pois isso pode ajudar a manter o estômago com a sua forma normal. Quando era pequeno, havia sempre uma grande tigela de sopa na mesa durante o jantar e todos tinham uma colher para beber a sopa. No fundo, toda a família partilhava amor e saliva no simples acto de beber a sopa. É difícil mudarmos hábitos iniciados na infância. Por isso, eu bebo sempre algo quando como uma refeição. Não fui capaz de atenuar o olhar de preocupação dessa pessoa amiga de Hong Kong.

 

Nós bebemos água quente…” Eu sei que os japoneses estão habituados a beber água gelada ou chá, pelo que a minha resposta podia soar um bocado pedante. Não sabia se seria satisfatória.

 

Ah… água quente? De facto, a água quente sabe bem”, afirmou o meu amigo, espantando com a minha resposta enquanto terminava de beber o resto da cerveja no copo. “Também adoro beber água quente. Bebo-a de manhã, depois de me levantar da cama. Mas não posso beber mais do que dois copos.”

 

Nos últimos anos, cada vez mais se encara o acto de beber água quente como uma dieta de beleza que faz bem à saúde das pessoas. Acredito que o meu amigo estava a ser sincero quando disse que a água quente era saborosa. No Japão, existe a máxima “Karada ni oishi”, que significa que o nosso corpo sente esse sabor delicioso porque os nossos órgãos estão descontraídos devido à água ao invés de o fazer através das nossas papilas gustativas. Quando o nosso corpo se sente confortável, o nosso espírito também se refresca.

 

Os japoneses chamam sayu à água quente. “Yu” significa água a ferver. É por isso que o banho é Yu. A água quente que colocamos em bules e nos copos de macarrão instantâneo também é Yu. Mas quando a água quente se torna uma espécie de bebida, chamamos-lhe sayu. A cor branca da sayu simboliza a pureza e a claridade. Não há qualquer sabor, cor, tempero, pó ou substância nociva numa chávena de sayu. Quando se pronuncia a palavra sayu em japonês, é comum pensarmos em sopa quente que irradia calor e nos aquece num Inverno frio.

 

Na maior parte das ocasiões, oferecemos aos convidados bebidas frias ou chá quente. Só lhes servimos sayu quando há uma cerimónia do chá japonesa que envolve o Caminho do Chá. A estética japonesa está concentrada no Caminho do Chá. Os objectos que usamos para fazer chá, as flores e plantas entre canteiros, o quadro japonês na parede, o som crepitante do carvão que arde, o som dos tecidos que se movem, o aroma do chá no ar, o zunido de alguns insectos do outro lado da janela e as respirações aguardadas na divisão… tudo isto são momentos de beleza, relativos a estações, relativos a pessoas. A divisão silenciosa com um design simplista está cheia de beleza e sensações que os convidados só poderão apreciar de coração aberto. Uma chávena de sayu é oferecida antes da cerimónia do chá para que os convidados lavem o ruído da sua vida mundana. Alguns anfitriões da cerimónia do chá oferecem uma chávena de sayu depois de os convidados terem provado usucha (chá leve). A sayu tem um sabor suave e doce depois de ter estado a ferver durante algum tempo no bule. O anfitrião da cerimónia do chá coloca então a sayu na chávena de chá colher a colher em frente dos convidados. O chá terá um sabor a matcha, bem como a sayu. O travo amargo do chá tornará a sayu ainda mais doce. “A sayu é saborosa” é a mensagem que o nosso corpo, a nossa alma e a nossa língua nos enviam.


8.jpg

 

Ouvi dizer que oferecer sayu aos convidados numa cerimónia do chá tem outras vantagens. A cafeína na matcha pode afectar a capacidade do nosso corpo para absorver ferro. A sayu fervida num bule de ferro pode ajudar a complementar o ferro que perdemos por bebermos chá. Mas acredito que as pessoas já não tenham este factor em consideração quando oferecem sayu aos convidados, porque a nutrição se tornou muito acessível hoje em dia.

 

Uma chávena de chá que serve matcha chama-se chawan. Depois de terminar uma refeição num bar izakaya japonês, será servida hōjicha (uma espécie de chá verde japonês) em yunomi, umas chávenas de chá estreitas. Quanto à taça usada para servir sayu e sencha (outra forma de chá verde japonês), ela tem o nome de kumidashi chawan. A Kumidashi chawan é sobretudo feita de porcelana branca e possui um bocal largo, a melhor forma de apresentar a clareza do chá. O termo yunomi é fácil de entender. Yu significa beber em japonês. Como tal, as chávenas usadas para beber bebidas quentes são chamadas de yunomi. Mas porque é que a chawan para servir água quente se chama kumidashi (retirada de água)? Pesquisei bastante em busca de uma resposta clara, mas não encontrei nenhuma que me satisfizesse. É provável que, numa cerimónia do chá, o acto de tirar água do bule de ferro seja visto como uma “retirada de água”. Cada peça para o chá recebeu o seu nome consoante a sua função numa cerimónia do chá por causa da tradição. Hoje em dia, já não lhes prestamos tanta atenção assim. Muitas famílias jovens já nem sequer fazem chá e apenas bebem chá engarrafado em casa.

 

A Kumidashi chawan é sobretudo usada quando há convidados. Mas a nossa kumidashi chawan, criada pelo artista Naoto Ishii, de Kyotamba, é usada para beber sayu. A nossa kumidashi chawan é curta e tem um grande bocal. Nela, a sayu a ferver consegue arrefecer muito depressa até ficar a um temperatura adequada para beber. Talvez seja verdade que o chá frio não é saboroso. Mas acredito que a nossa kumidashi chawan nos proporciona a experiência ideal no que toca a beber sayu. Só precisamos de beber o chá o mais depressa possível e tudo ficará bem. Como a nossa chawan é bastante larga, não nos sentimos seguros para a agarrar apenas com uma mão. Quando a usamos, agarramo-la com as duas mãos, como se estivéssemos a dizer “Itadakimasu” (“Recebo humildemente”, em português). Uma taça de água quente não é algo que nos chegue facilmente. A neve cai do céu para os lagos. A água dos lagos é por nós retirada através de tecnologias e infraestruturas que foram construídas com o esforço de inúmeros engenheiros e trabalhadores da construção. É assim que temos acesso à água que nos acalma a garganta. Não recebemos apenas presentes da natureza, também os recebemos de trabalhadores empenhados. E torna-se ainda mais importante para nós não tomar as coisas como garantidas durante tempos difíceis, quando o mundo está a ser sujeito a uma série de desafios.