Tracy Choi

Realizadora. Ganhou em 2012 o Prémio do Júri do Festival Internacional de Cinema e Vídeo de Macau com o documentário “Aqui Estou”, o qual foi exibido, a convite, em vários festivais de cinema na Ásia e na Europa. Posteriormente, a realizadora frequentou o curso de mestrado em produção cinematográfica na Academia de Artes Performativas de Hong Kong, tendo a sua obra “Sometimes Naive”, resultante da graduação, sido seleccionada para competir no Festival de Cinema Asiático em Hong Kong em 2013. Por sua vez, o documentário “Farming on the Wasteland” foi galardoado com a Menção Honrosa do Júri no Festival Internacional de Cinema e Vídeo de Macau 2014. A sua recente obra “Sisterhood”, seleccionada para competir no 1.º Festival Internacional de Cinema de Macau, conquistou o Prémio do Público de Macau e foi nomeada para dois prémios na 36.ª edição dos Prémios Cinematográficos de Hong Kong.

 


Uma garfada de memória

36a edição | 12 2019

Quando era criança, vi a uma animação japonesa sobre um chef chinês. Nessa animação, o chef é capaz de provocar “braingasms” e lágrimas às pessoas simplesmente através dos pratos que cozinha. Achei o enredo excessivamente dramático, mas apesar disso continuei a ver, já que era muito divertido. Quando faço filmes, faço por ter histórias e personagens autênticas e relacionáveis. Não quero enredos excessivamente dramáticos nos meus filmes. Porém, no verão passado tive uma experiência gastronómica dramática que me permitiu provar a minha própria memória. Chorei naquele momento, exactamente como as personagens da animação dramática. Foi uma experiência muito autêntica para mim.

A história é sobre a minha avó. Os meus avós nasceram em Chaozhou, uma cidade da província vizinha de Guangdong. Vieram para Macau em busca de mais oportunidades quando eram jovens. Então, tiveram uma série de filhos e começaram a construir uma família aqui. Embora a minha mãe tenha seja nascida e criada em Macau, ela contou-me muitas coisas interessantes que experienciou ao visitar Chaozhou. Disse-me que naquela época as condições de vida em Chaozhou não eram muito boas e, portanto, eles vestiam muitas roupas tanto no inverno quanto no verão, para depois distribuírem as roupas por outras crianças quando visitavam a cidade. Estas histórias podem ser cenas incríveis de filmes. É muito difícil encontrar cenas semelhantes na vida real dos dias de hoje.

Mas eu nunca visitara realmente a cidade da família da minha mãe no passado. Há dois anos, ela encontrou-se com alguns parentes no funeral da minha avó e começou a visitar Chaozhou novamente. Este ano tive algum tempo livre e fui a Chaozhou com a minha mãe. Aquela já não é a cidade pequena e pouco desenvolvida que a minha mãe guarda na memória. Mas Chaozhou também não é tão próspera quanto as grandes cidades. Ainda assim, é hoje uma cidade moderna. Algo interessante que notei foi que o primo da minha mãe cruzava-se sempre com parentes e amigos enquanto nos mostrava a cidade. As pessoas em Chaozhou têm relações estreitas entre si, o que me fez recordar Macau no passado.

Foi a minha primeira vez em Chaozhou, então achei tudo interessante. Mas os momentos memoráveis atingem-nos sempre de maneira inesperada. Como raramente visito Chaozhou, os meus parentes foram extremamente hospitaleiros comigo. Fizemos tantas refeições que não me consigo lembrar exactamente quantas vezes tínhamos comido antes daquele lanche à noite. Só consigo lembrar-me que os meus parentes tinham sempre algo para provarmos a cada duas horas, desde a manhã. Então, quando estávamos a fazer aquele lanche à noite, eu já me sentia inchada com tanta comida e não queria experimentar o peixe-espada que estava à minha frente. Mas sentia-me obrigada a pelo menos provar cada prato por uma questão de cortesia. Quando tirei um pouco de peixe e comecei a mastigar, foram lampejos de memórias do passado que me atingiram, em vez do sabor do peixe. Vi a minha avó a dar-me comida. Vi-a a ela e a mim, de riquexó a caminho de casa depois de comprarmos frango no mercado local. Vi também a minha avó doente, pálida na cama do hospital. Todos estes lampejos de memória inundaram a minha mente de uma maneira avassaladora. No final, podia até ouvir a minha avó a chamar o meu nome. Não pude conter as lágrimas e chorei. Não estava a chorar por me sentir triste. Mas de algum modo simplesmente não aguentei. A minha mãe e os meus parentes pensaram que eu estava engasgada ou algo assim. Foi um sentimento muito difícil de explicar. Por isso eu só podia brincar com a situação e deixar passar. Para ser sincera, não me lembro daquele prato de peixe-espada. Eu não conheceria este tipo de peixe se a minha mãe não me dissesse que a minha avó gostava de cozinhá-lo. E não esperava que o sabor do peixe fosse ainda mais confiável do que a minha própria memória. Foi a primeira vez que uma determinada sensação me trouxe memórias.

Acho que se puséssemos esta cena num filme, pareceria excessivamente dramática a princípio. Afinal, parece um pouco absurdo que um determinado prato de peixe faça as pessoas pensarem na sua infância e chorarem. Mas foi uma experiência muito verdadeira para mim e fez-me perceber que ainda existem muitas maneiras possíveis de manter os filmes relacionáveis e autênticos. O foco dos filmes pode não ser necessariamente quão realistas são os seus enredos. Podem ser os métodos que usamos para deixar o público sentir as emoções que queremos transmitir. Esta é a pergunta que requer mais discussão.