Filipe Miguel das Dores─A Arte Como Veículo para Transmitir a História

08 2016 | 16a edição
Texto/Lei Ka Io

Ninguém esperava que Filipe Miguel das Dores pudesse ser bem-sucedido quando decidiu aplicar técnicas de desenho arquitectónico na pintura de aguarelas. Alguns dos pintores mais experientes defendem o conceito mais convencional de que as aguarelas têm de ser produzidas através de um estilo de mão livre e que não é necessário dar atenção ao detalhe. José Lázaro das Dores, primo de Filipe, também duvidou e achou que Filipe poderia estar apenas a desperdiçar o seu tempo, uma vez que seria difícil dominar uma série de técnicas e o processo de aprendizagem seria lento. No entanto, Filipe conseguiu combinar ambas as técnicas de desenho e venceu o John Purcell Paper Prize do Royal Institute of Painters in Water Colours por dois anos consecutivos. “Acho que sou bastante rebelde e teimoso. Se me disserem que não consigo fazer algo, vou provar que estão errados.”


Um Rebelde do Mundo das Artes Inspirado pela Beleza Nocturna de Macau


Ser um artista premiado é uma das formas de alcançar fama na pintura. Filipe acredita que os artistas emergentes têm de escolher participar nas competições certas, sendo que o mais importante é defenderem o seu próprio carácter e melhorarem as capacidades artísticas. Não é necessário mudar de estilo para ir ao encontro do que os painéis de jurados querem. “Nunca sabemos do que é que os jurados estão à procura, e todos os anos o painel é composto por pessoas diferentes.”


A experiência de Filipe enquanto criança ainda tem um impacto forte no seu estilo actual. O seu avô, José das Dores, fazia regularmente modelos arquitectónicos. A arquitectura clássica tem normalmente uma estrutura complicada, mas o avô de Filipe conseguia construir meticulosamente os modelos de acordo com os desenhos arquitectónicos, e todos os detalhes eram feitos numa escala proporcional. O modelo do Edifício-Sede dos Correios de Macau feito por José das Dores é um dos que estão em exposição no Museu de Arte de Macau. Filipe foi criado pelo avô. Enquanto José trabalhava, Filipe ficava ao seu lado, completamente fascinado pelos desenhos.


Conforme foi crescendo, Filipe aprendeu a desenhar e foi desenvolvendo a ideia de combinar desenho arquitectónico com aguarelas.


“Quando se faz um desenho arquitectónico em perspectiva, normalmente a profundidade de campo é necessária para desenhar um edifício, para que o primeiro plano seja mais nítido que o fundo. Mas, no meu caso, também preciso de compreensão matemática para desenhar. Preciso de fazer um primeiro esboço e depois copiá-lo para um esboço maior.” Se tomarmos o edifício do Clube Militar como exemplo, primeiro Filipe tem de contar os pilares, calcular as distâncias entre eles, e depois contar as jarras que suportam o corrimão. É absolutamente necessário observar os detalhes. Quando pega nos pincéis, Filipe tem de desenhar como se estivesse a traçar um plano arquitectónico.


Não parece nada de especial desenhar um plano arquitectónico com aguarelas, mas estes desenhos estão todos carregados de emoções e da experiência pessoal de Filipe. A peça vencedora do último ano, Mario Night, é sobre o Gameboy. Uma vez, Filipe caminhou por um dos becos da Freguesia da Sé e descobriu uma parede com muitos canos, que se assemelhavam a uma cena do jogo “Super Mario Bros” para o Gameboy. Filipe lembra-se de comprar um seu primeiro Gameboy quando era criança, numa loja de brinquedos da Rua do Campo─o modelo transparente. Naqueles tempos, isso era algo de que valia a pena gabar-se entre os colegas.


Além de Mario Night, Filipe tem uma série de desenhos de Macau à noite. Quando estava na escola secundária, Filipe era rebelde e não gostava de ir para casa. Preferia caminhar pelas ruas com bons amigos e ficar na conversa até à meia-noite. Foi assim que descobriu que, à noite, Macau é um outro mundo, onde reina a tranquilidade, e isto tornou-se a sua inspiração.


Filipe descreve-se como “rebelde” quando era adolescente. Foi matriculado na Escola Portuguesa de Macau para fazer o ensino secundário. No entanto, sendo o Português o meio de instrução, Filipe não conseguiu adaptar-se e decidiu escolher disciplinas em que fosse fácil ter uma boa prestação, como desenho. As coisas acabaram por não correr bem e Filipe decidiu abandonar a escola. Depois disso, frequentou o ensino nocturno, apenas por sentir que tinha de completar o ensino secundário.


Filipe acabou por saber que o seu primo José Lázaro das Dores se tornara pintor depois de completar os estudos no Instituto Politécnico de Macau. Filipe não gosta de ler, mas adora pintar. “Tentei aprender a todos os níveis. Visitei o estúdio dele e conversámos. Mais tarde acabámos por nos conhecermos melhor e ele começou a ensinar-me desenho.” Ao contrário do ensino num instituto, onde o foco está muito nas teorias e técnicas, José Lázaro encorajou Filipe a usar a imaginação e a continuar a tentar, para ganhar mais experiência no processo de criação artística.


Um Artista de Excelência tem de Dominar Muitos Conhecimentos


Durante o período em que foi ensinado pelo seu primo, Filipe descobriu que a pintura não é apenas encher um papel de cores e linhas. Uma porta de armário abandonada e recolhida do lixo ou mesmo dos desperdícios de um estaleiro de obras, depois de se usar um maçarico a gás para queimá-la ou cobri-la com tinta, pode também tornar-se numa pintura. Aprender a pintar não se trata apenas de aprender arte. É preciso saber um pouco sobre relógios, vinho, história e também relações internacionais. Um artista de excelência tem de apreender um vasto conhecimento, para deixar os seus pensamentos instilarem o seu trabalho.


Quando a notícia do prémio recebido por Filipe em Londres começou a espalhar-se, um aluno de Macau que estuda Relações Internacionais em Londres veio visitá-lo. Foram tomar um café e conversaram sobrem o conflito israelo-palestiniano. Felizmente, enquanto Filipe estudava sob a alçada do seu primo, aprendeu a importância de aprender alguma coisa sobre tudo e tudo sobre alguma coisa, e por isso foi capaz de debater com aquele estudante.


O primo de Filipe também lhe ensinou história da arte contemporânea em Macau. “Naquela altura percebi que o estilo de pintura que aprendi com o meu primo, e a filosofia que estava por trás, tudo tinha sido transmitido por Mio Pang Fei nos anos 1980, quando a comunidade artística em Macau ainda era muito pacata. Mas pessoas como Carlos Marreiros lutaram arduamente para melhorar os direitos e os benefícios dos artistas, e tentaram encontrar mercados. Quando desenho, percebo gradualmente que não estou a fazer rabiscos mas a receber o que me foi transmitido pelos artistas mais velhos.”


Apesar de ter aprendido muito com o seu primo, há três anos Filipe decidiu inscrever-se no mestrado em Artes Visuais do Instituto Politécnico de Macau, para poder ter mais treino profissional e para responder às expectativas sociais segundo as quais ter um curso superior é uma exigência. Filipe, sendo constantemente rebelde, tem no entanto a sua opinião sobre o ensino superior.


“Sendo honesto, não estudei arduamente. Passei muito tempo a trabalhar na minha arte. Escolhi especialmente áreas multidisciplinares como escultura e gravura, porque se fizesse esses trabalhos por minha conta não poderia suportar os custos.”


A maior crítica de Filipe ao ensino superior é o modo como é encarado o profissionalismo. Houve uma ocasião em que pediu a um professor sugestões para comprar pincéis de qualidade para caligrafia. O professor recusou-se a dar quaisquer sugestões e disse-lhe que, no nível de estudo em que ele se encontrava, não precisava de utilizar bons pincéis.


“Na verdade eu estava apenas à procura de um presente. Mas muitas das pessoas mais velhas acham que ainda não chegou o momento de os mais jovens aprenderem certas coisas. O sistema estabelece imensas regras devido ao profissionalismo. Mas o que é o profissionalismo? Trata-se de ter certas qualificações? Ou de possuir um certo conhecimento? Ou de saber aplicar o conhecimento que se adquiriu? Eu acredito que a última resposta é a correcta e é por isso que acho que não é necessário estabelecer tantas regras.”