Yap Seow Choong

Yap é um aficionado do design, das viagens e de tudo o que é belo na vida. Escreve para várias publicações sobre viagens e design e tem vários livros publicados, dos quais se destacam Wander Bhutan e Myanmar Odyssey. Antigo editor da Lonely Planet China, Yap é agora o principal responsável por todos os conteúdos da Youpu Apps, uma empresa de aplicações sediada em Pequim.


A nova cara da velha Pequim

29a edição | 10 2018

Quando cheguei a Pequim, a visão do céu azul apanhou-me desprevenido. São as minhas expectativas em relação a Pequim muito baixas? O que é suposto ser vulgar e essencial, no entanto, tornou-se numa esperança extravagante. Não é de surpreender que muitos dos meus amigos, independentemente da sua riqueza, tenham deixado Pequim e mudado para Yunnan.

 

Vivi oito anos em Pequim. Lembro-me de brincar com os meus amigos de que levaria meio dia para atravessar uma estrada, pois as estradas eram demasiado largas e a cidade demasiado grande. Pequim simplesmente não foi projectada para pessoas comuns: muitas vezes, uma pessoa já está preparada para se atrasar para um encontro com amigos devido ao trânsito. A cidade em si serve como desculpa para se estar atrasado. A minha recente viagem a Pequim, no entanto, impressionou-me indelevelmente. A transformação dos “hutongs” significa que a cidade é agora mais acessível.

 

Pequim decidiu acabar com os “buracos na parede” para melhorar a aparência da cidade. Nos anos 80, durante a fase inicial de reforma e abertura da China, o governo chinês encorajou os trabalhadores migrantes a iniciarem os seus negócios, fazendo com que os pequenos negócios crescessem como cogumelos nos hutongs. Particularmente, as pessoas poderiam começar os seus pequenos negócios assim que um buraco tivesse sido aberto nas suas residências privadas. Como resultado, os hutongs foram rapidamente inundados por migrantes vindos de diferentes províncias da China. Com mais pessoas veio maior deterioração: uma revisão completa é, portanto, a única solução para a transformação de Pequim numa cidade habitável.

 

Construções não autorizadas nos hutongs foram erradicadas uma após a outra. Além disso, pequenas lojas decrépitas são afectadas e demolidas, e os ainda não tão sofisticados “vagabundos de Pequim” também são tratados com desprezo e expulsos. A limpeza gerou sentimentos negativos devido aos seus esforços demasiado simplistas e brutais. Inegavelmente, os hutongs são mais bonitos e mais limpos agora, e os meios de subsistência dos habitantes locais também foram melhorados. No entanto, perderão os hutongs a sua característica de serem um lugar de cruzamento entre o bem e o mal? Parece não ser possível encontrar uma solução perfeita para um problema tão complicado. É melhor eu ater-me ao meu papel de turista e andar pelos hutongs que parecem labirintos. Esta é a Pequim que eu conheço, a Pequim de que eu mais gosto. Além disso, uma série de cafés e hospedarias sofisticadas estabeleceram-se nos hutongs, e os seus designs expressam uma simplicidade chinesa. Afinal, diferente do carácter xenófilo de Xangai, Pequim é mais chinesa.

 

Dediquei tempo suficiente aos hutongs nas proximidades de Qianmen durante a minha recente viagem a Pequim. Aquela área costumava estar num estado caótico, com vibrações vulgares e turísticas por toda a parte. Apesa de Dashilar e Liulichang estarem alinhadas com lojas centenárias e rodeadas por velhos hutongs, não era de todo uma caminhada agradável. Qianmen é uma área histórica que fica a sul da Praça de Tiananmen e da Cidade Proibida. Além disso, sempre foi um lugar de confluência para trocas e comércio, e os negócios também trazem consigo entretenimento: costumava estar lotada de bordéis; o famoso Cinema Daguanlou também é nesta área. O nome do cinema carrega a singularidade chinesa, o que contrasta com os nomes ocidentalizados dos cinemas antigos de Xangai. Eis Pequim, um lugar orgulhoso da sua história e identidade.

 

Fui encontrar-me com um amigo na Sanlihe, em Qianmen. Mas achei inacreditável o que vi diante dos meus olhos: aquela não era a Pequim que eu conhecia. Os hutongs tinham agora nova vida, com um toque de aldeia de água desde que trataram de uma fossa malcheirosa coberta há muito. Os pequenos rios em ziguezague deslizavam silenciosamente junto às casas antigas, enquanto os salgueiros nas duas margens ondulavam ao vento, criando um ambiente de final de verão antecipado. À vista estavam os lótus de verão na lagoa, com carpas a perseguirem-se umas às outras. Mais importante, pode-se dizer que o design deste espaço foi pensado, pois as paredes das ruas e das casas têm aplicados azulejos antigos usados e tijolos cinzentos, decorados com padrões modestos e pitorescos. Evidentemente, não há cidades feias, apenas cidades preguiçosas.

 

Uma série de casas antigas e planas junto à margem haviam sofrido transformações. Ao passar pelo Clube do Livro dos Sussurros da Primavera, fiquei impressionado com a sua janela francesa, mesmo que a casa em si não fosse atraente. De seguida, aproximei-me do vidro para espreitar e vi alguns jovens folheando revistas, como se estivessem divorciados do mundo exterior. Na verdade, o Clube do Livro, sendo a primeira biblioteca de revistas na China, tem mais de 400 revistas de todo o mundo, algumas até já esgotadas.

 

O fundador do Clube do Livro é o marido de Rene Liu, Zhong Xiaojiang, que criou esta biblioteca para ampliar o cerimonialismo da leitura. Isto é bom, pois poderia destacar a importância das coisas, especialmente quando elas foram negligenciadas. A leitura é tão regular e habitual como outras rotinas diárias, como escovar os dentes e lavar o rosto. Então, não será reduzida a mero pretensiosismo depois de lhe ser dedicado tal cerimonialismo? No entanto, quando nos confrontamos com a queda acentuada de leitores de livros impressos, projectar cerimonialismo no acto de ler talvez possa ser considerado um estímulo à leitura. Simplesmente peça uma chávena de chá verde e mergulhe na paisagem enquanto lê, e o mundo que vai encontrar transcenderá o que está diante dos seus olhos.