Un Sio San

Un obteve a dupla licenciatura em Língua Chinesa e Arte (produção de cinema e televisão) da Universidade de Pequim e o duplo mestrado em Estudos da Ásia Oriental e Estudos da Ásia-Pacífico da Universidade de Toronto nas áreas de investigação em literatura e cinema. Ganhou o prémio de Henry Luce Foundation Chinese Poetry & Translation e foi poeta residente no Estúdio Criativo de Vermont nos EUA. Foi convidada a marcar presença em vários festivais internacionais de poesia tal como o festival realizado em Portugal e trabalhou como letrista da primeira opera interior original de Macau “Um Sonho Perfumado”. Publicou algumas colecções de poemas nos dois lados do estreito e tem-se envolvido no meio académico e em publicação por muito tempo, além de escrever colunas para meios de comunicação em Taiwan, Hong Kong e Macau.


Contar histórias oficiais com hip-hop e quadrinhos, sim ou não?

40a edição | 08 2020

Durante a pandemia de COVID-19, grupos de arte de vários países liberaram muitos recursos de cinema e televisão on-line, e tive a sorte de ver o Hamilton, aclamado como uma “obra-prima fenomenal de drama musical”.


O Hamilton tem sido bem recebido desde sua estreia, em 2015. Os bilhetes estão sempre esgotados e a receita das bilheteiras é superior a 100 milhões de dólares por ano. A peça merece realmente a reputação que tem, pois quebra as regras e inova ativamente ao utilizar estilos raramente usados em musicais tradicionais, como elementos do Hip-Hop, Rap, R&B e Soul para narrar o “sonho americano” em uma combinação bastante harmoniosa; as técnicas de expressão misturam o antigo e o moderno, com grande cuidado e precisão de detalhes e os resultados são sempre surpreendentes.


Utilizar a indústria cultural para retomar a História e transmitir os valores americanos para o mundo sempre foi o forte de Hollywood e da Broadway em Nova Iorque. Esse musical, uma reinterpretação entusiasmada e inspirada da vida de Alexander Hamilton, o Primeiro Secretário do Tesouro dos EUA, não é exceção.


A adaptação que o premiado compositor Lin-Manuel Miranda fez da biografia de Hamilton escrita por Ron Chernow, transformou em maravilhosas canções a longa e aborrecida história da fundação dos Estados Unidos e de como a Constituição foi escrita. Mesmo as ações do rei de Inglaterra ou dos pais fundadores dos Estados Unidos ganharam leveza ao serem representadas de forma lúdica, com os sérios debates políticos transformados em batalhas de Rap, ou o presidente a proferir insultos à americana. Tudo isso sem perder o bom gosto de vista. O famoso dramaturgo Edward Lam disse certa vez que a peça é “o primeiro musical de hip-hop, além de uma fórmula bem-sucedida para revitalizar a história”, e que “o Pop é a melhor maneira de provar quão viva está a História”.


Os americanos atrevem-se a representar a vida dos pais fundadores por meio do Hip-Hop, enquanto os japoneses são bons em transformar figuras históricas em personagens de banda desenhada. Quando viajei pelo Japão, senti a poderosa combinação de mangá com texto académico / literatura / história. O Santuário Dazaifu Tenmangū não apenas consagra o Sugawarano Michizane, considerado o “deus da aprendizagem” e o “Confúcio japonês” pelo povo, mas também realiza exibições de mangás e animes relacionados a ele. Em muitas livrarias de Kyushu é exibida com destaque a série de mangás Outen no Mon, que tem Sugawarano Michizane como protagonista, na qual se reformula a experiência de criação do “deus da aprendizagem” numa história interessante, sobre um jovem detetive, que desafia o esforço mental do leitor. Há também o mangá “Nabeshima Naosho” que comemora o 150º Aniversário da Restauração Meiji e reflete o caráter histórico da Revolução Industrial Japonesa.


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A exibição da vida de Sugawara no Michizane realizada no DazaifuTenmangū


O sucesso de Hamilton e dos “mangás históricos” ilustra quão importante é a “possibilidade de múltiplas formas de narrativas históricas” para o desenvolvimento das indústrias cultural e criativa, em que não se conta somente com uma perspectiva pela qual se projetam grandes acontecimentos nos pequenos detalhes e se descreve uma época através de uma pessoa, como também não há restrições de linguagens e de formas de expressão. Lin-Manuel Miranda teve a ideia para o seu Hamilton depois de ler um livro. Ele gravou o Hamilton Mix Tape com Hip Hop e enviou a Oskar Eustis, diretor do The Public Theatre em Nova Iorque e recebeu, imediatamente, autorização para produzir. A exímia combinação de “Hip Hop, História e heróis nacionais” pode soar como ousada ou controversa, mas não foi exactamente o que fez seu predecessor, a ópera rock francesa Rock Mozart, quando contou a vida do prodígio da música clássica por meio do rock’n roll? Imagine como os trabalhadores culturais de Macau representariam o Confúcio, Xian Xinghai e Zheng Guanying?


Espera-se que as “subculturas”, como a música popular e a banda desenhada, possam, de modo consciente, trazer o espírito do país. Para isso, é preciso ousadia, mas, ao mesmo tempo, uma boa dose de cautela, pois trata-se de desafiar a tolerância e generosidade daqueles que ocupam o poder e do público.


Talvez a melhor maneira de reacender a História seja por meio da cultura popular, mas a existência de um espaço criativo que permite o livre intercâmbio de pontos de vista é condição essencial para tal. É lamentável que os dramas sobre viagens no tempo ou lutas em palácios, que mostram superficialmente as histórias, ainda parecem ser o único meio de apresentar as diversas narrativas históricas para os produtores culturais nas regiões de língua chinesa. Se existe realmente uma fórmula para trazer à tona a História de forma vívida, é dotar as personagens de um pouco mais de humanidade, e permitir-lhes falar mais como seres humanos; além disso, é preciso que os criadores possam ousar e deixar que as ideias criativas brotem e cresçam, que apurem e retoquem a História e a Cultura por meio de inovações das expressões tradicionais.


Entre as formas inovadoras de representação da História e aquelas vulgares e superficiais tal como as séries dramáticas sobre viagens no tempo, gostaria de perguntar se aqueles que só sabem formalismo moral se escandalizam com as primeiras podem deixar de se perturbarem tanto se querem que a China possa estar entre os países capazes de elaborar produtos culturais e criativos revolucionários como o Hamilton e Outen no Mon?