Ron Lam

Escritora a residir no Japão, especializada em design, lifestyle e jornalismo de viagem, Ron trabalhou anteriormente como editora das revistas MING Magazine, ELLE Decoration e CREAM.


Virgem Maria Escondida na Estátua de Bodhisattva

16a edição | 08 2016

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“Já as viste? Aquelas estátuas de Bodhisattva com cruzes gravadas no peito”, perguntei ao meu marido que estava a ver um programa de variedades comigo, aborrecido. “Vi-as em manuais escolares quando era miúdo, mas nunca vi as verdadeiras.” “Eu quero mesmo vê-las. É surpreendente que o Japão tenha um pedaço de história assim.” O meu marido pareceu desaprovar a minha curiosidade. Para ele, era do senso comum dizer que o Japão fora em tempos isolado, e a perseguição aos católicos durante o período Edo e Tokugawa Bakufu (1603-1867) não merecia grande entusiasmo.


A 15 de Agosto de 1549, chegou a Kagoshima o primeiro missionário, Francisco Xavier da Companhia de Jesus. Para obter aprovação oficial a fim de realizar trabalho missionário no Japão, visitou o Mikado (imperador) de Muromachi Bakafu várias vezes desde Janeiro de 1551, mas em vão. Mais tarde, percebeu que os dignitários japoneses atribuem grande importância à aparência e à etiqueta, por isso visitou o General Ouchi Yoshitaka em Abril, vestindo roupas grandiosas e levando-lhe objectos raros como telescópios, relógios de mesa, óculos e mini-espingardas. Com a sua ajuda, Xavier obteve a aprovação do Mikado e iniciou oficialmente o seu trabalho missionário no Japão. No entanto, o esforço de Xavier não conduziu ao desenvolvimento harmonioso do catolicismo no Japão. A partir de 1587, o trabalho missionário passou do reconhecimento público para o consentimento. Em 1614, Tokugawa Ieyasu reforçou as restrições contra a religião, proibindo todas as actividades da Igreja Católica. Mais tarde, uma série de missionários e padres foram martirizados, enquanto outros foram obrigados a abandonar o Japão devido a perseguições. Os católicos que mantiveram a sua fé tiveram de esconder Deus sob outra religião. “A Virgem Maria Bodhisattva”, uma estátua de Bodhisattva a segurar um bebé foi um sustento espiritual e de fé produzido nesse período.


O número de padres no Japão era extremamente baixo, mas as famílias católicas decidiram esconder-se sob o disfarce do Budismo e rezar à Virgem Maria disfarçada de Bodhisattva para terem liberdade de pensamento e, ao mesmo tempo, garantirem a sua segurança pessoal. Chamavam-lhes “católicos escondidos” no Japão. Eu não sou católica, mas quero mesmo ver pessoalmente esta estátua de Bodhisattva, pois penso que ela gravou a força de vontade das pessoas contra a opressão ideológica. No dia a seguir a ter visto o programa sobre a estátua, vi uma notícia relacionada numa revista – há um Museu do Património Cristão em Ibaraki, perto de Osaka. Nele estão relíquias históricas dos “católicos escondidos”. No fim-de-semana seguinte, escolhemos o museu como destino de passeio.


O museu está situado numa região chamada “via católica escondida”. Em tempos, foi uma importante região para os missionários católicos – Dom Justo Ukon Takayama, de Takatsuki, era dono da terra e era católico. Mesmo depois de Toyotomi Hideyoshi ter proibido os missionários, vários católicos escondidos continuavam a encontrar-se aqui. O nome original do lugar é Templo Sendaiji, e penso que se os discípulos esconderam a Virgem Maria num Bodhisattva, era possível que tivessem escondido uma “igreja” dentro de um “templo”. Mas depois de passear um pouco, não consegui descobrir qualquer templo. Mais tarde percebemos que o verdadeiro “templo católico” chamado Kohunbyou está situado numa montanha mais alta, construído como uma casa japonesa, para cobrir a sua aura religiosa e manter-se discreto.


O Museu do Património Cristão não apresenta a Maria Bodhisattva, mas tinha uma colecção de objectos católicos originalmente recolhidos de locais escondidos das residências. Entre eles, estava um que se chamava “a estante não aberta”, originalmente escondido numa viga de uma casa de família. A estante não está fechada, mas os antepassados do dono instaram-no repetidamente a evitar abrir a estante. Não explicaram porquê, mas os seus descendentes mantiveram a promessa. Mais tarde, a família violou os desejos dos antepassados, apesar da forte oposição da sua avó, que nasceu no final do período Tokugawa Bakufu. Dentro da estante estavam objectos e imagens católicas que hoje pareceriam inofensivas. Mas para a avó, que passou pela opressão severa do Bakufu, eram grandes tabus – o medo das proibições missionárias parecia ter-se inscrito profundamente no seu coração.


“A via católica escondida” costumava ser uma área residencial normal mas, desde que foi construído o museu que alberga este interessante episódio histórico, tem atraído visitantes de todo o Japão. Mais tarde, abriu o Madamamura Café, uma casa de chá-restaurante temático do período Jomon, e deu vida a este bairro banal. Além de servir refeições leves, o café também serve produtos caseiros japoneses. No Japão, há muitas comunidades que floresceram por terem acolhido museus e galerias de arte. O Museu de Arte Oyamazaki Villa, localizado no município de Quioto, é outro exemplo. Rejuvenescer uma cidade, protegendo e preservando a história e o carácter de cada bairro, é muito mais importante do que ter novos edifícios.