Ron Lam

Escritora a residir no Japão, especializada em design, lifestyle e jornalismo de viagem, Ron trabalhou anteriormente como editora das revistas MING Magazine, ELLE Decoration e CREAM.


Literatura e publicidade

28a edição | 08 2018

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Há algum tempo, dez “escritores” de Hong Kong juntaram-se a uma empresa de produtos de limpeza doméstica para lançar uma campanha de marketing de “literatura detergente”. Os escritores criaram peças literárias de menos de 55 palavras cada, impressas nas embalagens dos produtos. As embalagens desta série geraram muito burburinho na cidade. Mas isto é algo de que a marca não quer ouvir falar. Os amantes de literatura de Hong Kong riram-se do plano, dizendo que a maior parte dos autores seleccionados não eram literários. Diz-se que o mercado-alvo criativo destes escritores são os mais jovens, mas os mais jovens prestam pouca atenção à estratégia de promoção da marca, dizendo que são as suas mães que compram o detergente e que não têm nada que ver com isso. 


Quando o assunto é literatura e embalagens de produtos, no ano passado a empresa japonesa de tecnologia NEC apresentou uma linha de café literário. A ideia era vender “literatura bebível”, o que também gerou burburinho. A NEC seleccionou seis clássicos da literatura, incluindo Collection of Young Herbs, de Tōson Shimazaki; No Longer Human, de Dazai Osamu; I Am a Cat, Kokoro e Sanshirō, de Natsume Sōseki; e The Dancing Girl, de Mori Ogai, e produziu grãos de café únicos para cada obra. As embalagens de cada lote de café único foram impressas com o título e o nome do autor. E isso, é claro, não foi tudo. 


Através de um sistema de inteligência artificial, o NEC the WISE, desenvolvido pela NEC, a empresa recolheu 10.000 opiniões de leitores sobre cada obra e analisou os diferentes sentimentos dos leitores ao lerem aquelas obras. Por exemplo, ao lerem I Am a Cat, as pessoas terminavam o livro de uma vez, sem interrupções. O gato, personagem central, é muitas vezes sarcástico, cheio de humor, mas ainda revela sentimentos de amargura em relação ao mundo. E No Longer Human é conhecido por ser um livro doloroso. O pensamento depois da leitura ascende e cai, e é difícil libertarmo-nos dele por muito tempo. 


Amargo, doce, travo, clareza e prazer – a NEC encontrou o sentimento correspondente à leitura para os cinco tipos de grãos de café. O azedume da história é o amargo, a memória da juventude é a doçura, o pensar na vida é o travo, a sensação de consistência é a clareza e o deleite da leitura é o prazer. O NEC the WISE transformou os sentimentos dos leitores num gráfico. Entregou-o à empresa de café Yanaka e pediu-lhe que misturasse os grãos mais apropriados de acordo com o gráfico, e que os preparasse de maneiras diferentes para obter os sabores certos. Ao beber o café, as pessoas terão uma sensação semelhante à da literatura, que é o conceito central de “literatura bebível”. 


Quão bem-sucedidas seriam as vendas do café não era o que interessava à NEC. O plano passa por promover o sistema NEC the WISE e fazer com que as pessoas saibam como esta série digitaliza os sentimentos complexos e abstractos do público e os transforma em gráficos concretos, até em produtos. 


No Japão, tal como em Hong Kong, a literatura está cada vez mais desligada da vida quotidiana. Cada vez menos pessoas lêem, o que é um dilema diário para as livrarias e editoras japonesas. Porque a literatura parece ser cada vez menos notada, fico sempre espantado ao ver as obras de poetas e escritores em anúncios de vez em quando. Mitsuyo Kakuta e Shuichi Yoshida chegaram a cooperar para escrever séries narrativas para a Tiffany no jornal Morning Sun; o centro comercial LUMINE utilizou cinco poemas da jovem poeta Tahi Saihate como conceito para a decoração de Natal do espaço. Os textos literários mais frequentemente escolhidos por publicitários eram os do poeta Shuntaro Tanikawa. Em 2006, a Kubota, uma empresa de maquinaria, usou o seu poema A Nossa Estrela como texto de publicidade. 


A Nossa Estrela – Shuntaro Tanikawa 


A estrela pisada pelos pés descalços

A estrela do solo


A estrela perfumada quando a noite chega 

A estrela da flor


A estrela com oceano feito de uma gota

A estrela da água


A estrela enviada pelo morango ao longo da estrada

A estrela deliciosa


A estrela que canta na distância

A estrela vento


A estrela diz a mesma alegria e tristeza em cada palavra

A estrela do amor


A estrela com todas as vidas que acabam coexistindo

A estrela da cidade natal


A única nas estrelas infinitas 

A nossa estrela


Shuntaro Tanikawa compara o pequeno esplendor da vida a uma estrela e depois, de perto para longe, atrai os seus olhos para a terra em que vivemos. No anúncio, o poema está impresso em fotos de um terraço ao pôr-do-sol, o que é muito bonito. Há pequenas notas por baixo da imagem: “Espero que o brilho bonito desta estrela permaneça para as gerações futuras. Espero que a alegria de viver neste planeta seja compartilhada por todas as pessoas”. Através de um poema com uma profunda concepção artística, este anúncio cravou profundamente a imagem da Kubota na mente do público. 


Não importa se é na “literatura bebível” ou noutros anúncios, a literatura e a poesia cobrirão as mercadorias como a neblina. É somente quando o leitor se afasta lentamente que a paisagem real se torna mais profunda. O plano de marketing de produtos de limpeza doméstica não pode, no final, comover o coração das pessoas. Talvez as obras desses dez escritores não tenham o poder da literatura.