Ron Lam

Escritora a residir no Japão, especializada em design, lifestyle e jornalismo de viagem, Ron trabalhou anteriormente como editora das revistas MING Magazine, ELLE Decoration e CREAM.


Hotel como uma janela para a cultura regional

40a edição | 08 2020

Durante o período de epidemia, inaugurou-se o hotel de um amigo meu, na cidade de Kuwana, na província de Mie. Tendo vivido no Japão por muitos anos, quase não tenho a mínima idea sobre Kuwana. Apesar de suas ameijoas roliças e deliciosas e de alguns hotéis de negócios, Kuwana não é propriamente uma cidade turística. O meu amigo comprou lá uma casa, renovou-a e transformou o jardim originalmente desolado em um pátio tipicamente japonês, onde não apenas colocou várias obras artísticas seleccionadas por ele próprio e pela sua esposa, como ainda construiu, mais tarde, um banho ao ar livre. Das alterações, a minha preferida é a porta-janela no segundo andar, construída no lugar de uma parede; depois de a parede vir abaixo, a vista da beira-rio e do templo xintoísta pode ser contemplada de dentro da sala. Apesar de a paisagem da cidade não ser exactamente deslumbrante, vista daquela janela Kuwana é, sem nehuma dúvida, uma cidade realmente agradável.


O meu amigo nasceu e cresceu em Kuwana, e a sua casa fica perto da rua antiga onde se situa o seu hotel. Embora a cidade se tenha gradualmente desenvolvido, na zona da antiga rua ainda se conserva bem a paisagem tradicional do Japão, o que é bastante precioso. A propósito, o meu amigo veste o quimono diariamente, em qualquer ocasião, seja pública ou pessoal. Uma vez que é raro ver no Japão homens assim trajados, qualquer que seja a estação do ano, achei estranho quando nos encontramos pela primeira vez mas, depois de chegar a Kuwana e ver o local onde ele cresceu, parece que percebi o hábito do meu amigo—é exactamente esta cidade que cultiva o seu amor pela cultura japonesa tradicional.


Um hotel com muito charme é uma das razões pelas quais os turistas desejam visitar uma cidade. Para o meu amigo, acho eu, esse pequeno hotel é como uma janela pela qual se pode oferecer aos turistas a oportunidade de conhecer a cidade que o alimenta.


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Assim como a técnica de cenário emprestado do jardim japonês, pode-se ver a paisagem de Kuwana pela porta-janela do hotel, sendo emprestada e incorporada no interior da sala.


Nos últimos anos, muitos hotéis têm surgido em diferentes regiões japonesas, vários deles cujo centro de gravidade é o carácter regional. São arrendadas, maioritariamente, moradias isoladas, localizadas em arredores remotos da cidade, e os hotéis são concebidos para atrair pessoas e oferecer-lhes muitas actividades ligadas à região. Um exemplo bem representativo é o hotel “Umitota”, projetado pelos designers Akira Minagawa e Shinichiro Ogata. O “Umitota” fica em Teshima, uma ilha japonesa conhecida internacionalmente pelas artes. Para além das artes, de facto, há uma abundância de recursos naturais em Teshima, no entanto, devido aos horários de partida dos navios, muitos turistas apressam-se a ir embora depois de visitarem o Museu Artístico de Teshima. Os dois designers esperam que os turistas possam passar mais uns dias na ilha, e, assim, aproveitar o tempo para contemplar a paisagem natural e cultural da ilha, apreciar sua beleza com os cinco sentidos, inclusive o paladar. Conforme mudam as estações, os turistas podem, ainda, visitar as quintas e participar em actividades como a de colheita de vegetais selvagens e, depois, prepará-los na cozinha do hotel.


Localizado na Península de Bōsō na província de Chiba, o recém-inaugurado hotel “Marugayatsu” também é fruto de um amor profundo pela região. Ayako Makinoshima, directora da companhia de arquitectura “Pessoa e Casa Antiga” (Philosophy of Japan), responsável pela administração do “Marugayatsu”, é natural da província de Chiba. Durante anos, tendo assistido à rápida degradação, por falta de manutenção e de reparos, das casas antigas construídas com a estrutura tradicional japonesa de caixa e espiga, ela sentiu-se profundamente angustiada. Como fazer as pessoas apreciarem as construções feitas da sabedoria dos antecedentes? Talvez a resposta seja deixá-las viver nelas e experimentar a maravilha da incorporação da arquitectura, natureza e cultura.


O “Marugayatsu” costumava ser uma antiga casa de mais de 200 anos, que foi transformada nesse hotel concebido sob o lema “Vamos construir casas antigas, brincar, aprender e preservá-las”. Ayako Makinoshima colabora com as avós e avôs na Península de Bōsō, oferecendo aos hóspedes muitas actividades de experimentação que incluem cozinhar em fogão a lenha, trabalhar a cerâmica, fazer miso e a soba com as mãos, etc. Os interessados só precisam reservar com antecedência para que os habitantes locais dirijam-se ao hotel e lhes ensinem os conhecimentos tradicionais sobre a vida agrícola. Em quintas vizinhas ou dentro da floresta, ocorrem outras actividades de experimentação , como a de agricultura, a colheita do arroz ou a de apanhar cogumelos. Ayako Makinoshima deseja que durante o período de residência no “Marugayatsu”, os hóspedes possam gostar tanto da natureza quanto da cultura da Península de Bōsō.


Diante de tantos exemplos de conexão entre regiões e hotéis, penso, de repente, numa possibilidade: seria viável gerenciar esse tipo de hotel em Hong Kong ou em Macau? Tendo vivido no Japão por tantos anos, um facto que me surpreende muito é que a maioria dos japoneses acredita que Hong Kong e Macau tenham apenas paisagens urbanas onde se distinguem arranha-céus. O que eles ignoram, no entanto, é que nessas duas regiões há muitos lugares rodeados de natureza e que tanto a vida cultural quanto o ritmo tradicional são intimamente ligados ao quotidiano da gente. Uma vez que ainda se preserva um pouco da cultura regional tradicional, se houver uma maneira de a tornar mais visível, talvez não desapareça tão rapidamente.